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Os novos capitalistas buscam o bem e o lucro ao mesmo tempo

22/07/2014

Aos 35 anos, o paulista Thomaz Srougi mudou sua rotina de maneira radical. Formado em administração, com MBA e mestrado em políticas públicas pela Universidade de Chicago, ele fez carreira em empresas como a fabricante de bebidas Ambev e a construtora Gafisa.

Mais recentemente, em 2008, tornou-se sócio do fundo de investimento Galícia, com pequenas participações em grandes empresas. Desde agosto de 2011, porém, Srougi arrumou uma nova ocupação, que o levou a trocar o escritório do Galícia, na marginal Pinheiros, por um prédio modesto na Estrada das Lágrimas, na favela de Heliópolis, na zona sul de São Paulo.

É ali que funciona o Dr. Consulta, clínica em que a população local pode fazer consultas médicas de 15 especialidades por 80 reais cada uma. No mesmo local é possível realizar exames, como hemograma completo, por 10 reais. Hoje, 5 000 pacientes são atendidos por mês.

É gente que até então tinha de esperar três meses ou mais pelo atendimento na rede pública. A ideia é que o alcance da clínica cresça rapidamente. Srougi recebeu neste ano um aporte estimado em mais de 20 milhões de reais do fundo suíço LGT Venture Philanthropy e do Kaszek Ventures, dos fundadores do site de leilões virtuais MercadoLivre.
O plano é transformar o Dr. Consulta numa rede com 20 unidades até o fim de 2016. Oito delas serão inauguradas neste ano. “Queremos melhorar as condições de vida dessas pessoas”, diz Srougi, fundador e presidente do Dr. Consulta. “Vamos fazer isso ao construir um negócio viável, com lucro e ganho de escala.”

O mesmo levantamento apontou um dado ainda mais otimista: 46 bilhões de dólares dedicados a esse mercado no mundo hoje. Em 2010, o banco JP Morgan e a Fundação Rockefeller, uma das instituições filantrópicas mais tradicionais dos Estados Unidos, calcularam que o mercado de investimentos realizados em negócios de impacto (também chamados de investimentos de impacto) poderá atingir um montante de 400 bilhões a 1 trilhão de dólares até 2020.

No Brasil, o primeiro levantamento sobre o tema foi concluído em março deste ano por quatro instituições — a Ande, rede global de organizações que apoiam pequenas empresas em países emergentes, o fundo de investimento de impacto LGT Venture Philanthropy, a Quintessa Partners, consultoria brasileira de análise de investimentos, e a Universidade de St. Gallen, na Suíça, referência no tema.

O estudo identificou 28 investidores de impacto no país­. Apenas 21 aceitaram abrir informações. Desse universo, oito são instituições brasileiras, que afirmaram ter 177 milhões de dólares em caixa. Por trás delas estão alguns dos maiores empresários do país.

Um exemplo é o trio de fundadores da fabricante de cosméticos Natura. Luiz Seabra, Guilherme Leal e Pedro Passos criaram a Mov Investimentos em 2012. “A filantropia pura, sem retorno financeiro, tem seu papel, mas seu impacto é limitado”, diz Leal. A família Gradin, que detém 20% das ações do grupo Odebrecht, criou o Virtuose em 2012.
Antonio Moraes Neto, um dos herdeiros de um dos maiores conglomerados privados do país, oVotorantim, criou o pioneiro Vox Capital em 2009. A modalidade também tem atraí­do investidores tradicionais. O pernambucano Marcus Regueira, sócio da mineira FIR Capital, gestora de fundos de venture capital e de private equity, prepara-se para colocar em operação neste ano o First.

O fundo já vai começar maior do que seus concorrentes, com patrimônio estimado em 125 milhões de dólares, angariados com o apoio de investidores como o banco JP Morgan e a ONG Omydiar Network, do bilionário francês naturalizado americano Pierre Omidyar, fundador do site de leilões eBay, que dedica cerca de 300 milhões de dólares a negócios de impacto no mundo.

“O Brasil é um dos mercados mais promissores para os negócios dessa natureza”, diz Eliza Erick­son, diretora de investimentos da Omidyar Network. “O país teve muita mobilidade social na última década, mas ainda faltam produtos e serviços de qualidade para a baixa renda.”

Lucros vultosos

Esses novos capitalistas são uma espécie híbrida de filantropos e empresários tradicionais. O que os diferencia dos filantropos é o pragmatismo de mercado. Não há neles qualquer vestígio de culpa pelo lucro. Muitos deles, inclusive, fizeram carreira em grandes empresas e têm uma sólida formação de negócios, a exemplo de Srougi.

Por outro lado, um negócio de impacto necessariamente tem um produto que promove diretamente uma melhoria social ou ambiental mensurável. A lógica dessa modalidade prega que negócios de impacto podem gerar lucros vultosos para remunerar investidores e, assim, atrair mais dinheiro para multiplicar o alcance do impacto.

O precursor do modelo que alia lucro a impacto social é o economista Muhammad Yunus, que ganhou em 2006 o Prêmio Nobel da Paz por ter criado o banco de microcrédito Grameen, em Bangladesh, nos anos 70. A diferença é que, para Yunus, todo o lucro deve ser reinvestido no negócio.

Srougi faz parte de uma geração de empreendedores dedicados ao que se tornou conhecido no mercado como negócio de impacto. Em essência, é uma companhia que nasce com o duplo propósito de gerar retorno financeiro e proporcionar diretamente uma melhoria social ou ambiental.

Um levantamento do banco americano JP Morgan realizado em parceria com a organização Rede Global de Investimento de Impacto (GIIN, na sigla em inglês), divulgado no início de maio, identificou 125 instituições que investiram 10,6 bilhões de dólares em negócios de impacto no mundo em 2013.

Neste ano, esse mesmo grupo de investidores planeja desembolsar um volume de recursos quase 20% maior. Entre eles há desde fundos especializados nesse tipo de empresa a bancos como Credit Suisse e JP Morgan.

Filantropos tradicionais, como Bill Gates, também aderiram à modalidade. Por meio da Fundação Bill e Melinda Gates, ele já separou 1 bilhão de dólares para investir nesse tipo de negócio nos próximos anos.

“Se comparado ao total do mercado de capitais, ainda é pouco. Mas fico otimista em relação ao futuro, porque esses números vêm crescendo de maneira sólida e por meio de movimentos de mercado prudentes”, afirma Amy Bell, principal executiva do JP Morgan Social Finance, área do banco destinada a investir em negócios de impacto e estimular o crescimento do setor.

Na modalidade do investimento de impacto, a proposta é que o lucro seja embolsado como retorno financeiro, o que seduz os investidores. Em última análise, trata-se de uma resposta a um questionamento sobre o alcance da filantropia com base em doações — uma questão polêmica há décadas.

Economistas como Jeffrey Sachs, da Universidade Colúmbia, acreditam que investimentos a fundo perdido de países ricos podem, sim, aliviar a pobreza mundial. Críticos como William Easterly, professor da Universidade de Nova York, defendem o contrário.

Easterly argumenta que a responsabilidade coletiva por grandes metas faz com que ninguém tenha de responder individualmente por resultados se o esforço não dá certo. Em teoria, esse descompromisso não existe sob a pressão do capital em busca de retorno. Hoje o defensor mais respeitado dessa tese é Michael Chu, um chinês que cresceu no Uruguai.

Renomado professor da Universidade Harvard, onde leciona empreendedorismo social e negócios para a base da pirâmide, Chu é também um dos fundadores do Ignia, fundo de negócios de impacto com sede no México. “Saber que o lucro pode ser usado para beneficiar milhares de pessoas desfavorecidas é uma das melhores notícias das últimas décadas”, afirmou Chu a EXAME.

Trata-se de um movimento relativamente novo no Brasil e no mundo, que começa a ganhar consistência. A evolução é percebida pelos pioneiros. No Vox, Moraes já analisou 900 potenciais negócios de impacto nos últimos cinco anos. Desses, elegeu apenas cinco para receber aportes.

Dois deles passaram a integrar seu portfólio em janeiro. Um é a Tamboro, empresa de tecnologia que tem o propósito de melhorar a qualidade­ da educação no ensino básico. A companhia produz jogos virtuais com o obje­tivo de ensinar e fixar o conteúdo de disciplinas como história e matemática.

“O que nos atraiu foi o potencial de melhorar a qualidade do ensino público”, diz Daniel Izzo, sócio do Vox. Outra empresa é a mineira ToLife, que deverá faturar 33 milhões de reais neste ano com a venda de uma tecnologia que ajuda na triagem e agiliza o atendimento de usuários das unidades de pronto atendimento dos hospitais.

O sistema permite que um enfermeiro defina em menos de 2 minutos se o paciente tem um problema simples ou se deve ser encaminhado para a UTI.

Moraes e Izzo, do Vox, investiram na tecnologia patenteada pelo empreendedor Leonardo Lima de Carvalho, fundador da ToLife, porque acreditam que ela pode não só render muito dinheiro mas também aliviar o caos do atendimento nos serviços de saúde pública do país. A tecnologia da ToLife está presente em cerca de 5 000 unidades de pronto atendimento em 13 estados — 75% delas são públicas.

Outro sinal de maturidade do mercado brasileiro é a existência de empresas que dão lucro. Além da ToLife e do Vox, é o caso da Terra Nova, principal investimento da Mov, dos sócios da Natura.

Criada em 2001 pelo advogado paranaen­se André Luis Cavalcanti de Albuquerque, a companhia ganha dinheiro ao resolver um problema social típico do país: as disputas entre proprietários de terrenos e imóveis ocupados ilegalmente pela população de baixa renda.

Ele busca casos em que o dono briga há anos pela reintegração de posse na Justiça, e os moradores não conseguem acesso a saneamento básico e luz elétrica enquanto o impasse dura. Nesses casos, um acordo representa um ganha-ganha. Albuquerque negocia um valor entre o proprietário e os moradores, a ser pago em até dez anos.

Em média, os ocupantes pagam 10 000 reais por lote e a adesão gira em torno de 70%. A Terra Nova recebe um percentual desse valor. Não é um jeito fácil de ganhar dinheiro. Mas a despeito da complexidade, o negócio é considerado rentável e promissor. Estima-se que, na cidade de São Paulo, 13% das ocupações estejam irregulares. Em Cuiabá e no Rio de Janeiro, o índice chega a 40%.

No mundo, ainda há poucos exemplos de negócios do gênero lucrativos. Um dos que se tornaram referência de investimento bem-sucedido é a Express Life, seguradora criada em Gana, na África.

Com foco na baixa renda, a empresa ganhou em 2012 um sócio majoritário, o Leapfrog, respeitado fundo de investimento de impacto especializado em serviços financeiros, que recebe aportes de instituições como o JP Morgan.

Pouco mais de um ano depois, em dezembro de 2013, o Leapfrog vendeu sua fatia na Express Life por um valor não revelado para a Prudential, uma das maiores seguradoras britânicas. Nesse período, a carteira da seguradora saltou de 60 000 para 730 000 clientes — gente que, em sua maioria, nunca havia comprado um seguro antes.

Histórias como essas têm sido suficientes para insuflar o otimismo no mercado. Na pesquisa divulgada pelo JP Morgan e pelo GIIN no início de maio, 54% dos investidores de impacto afirmaram ter como meta atingir com seus negócios taxas de retorno compatíveis com o mercado.

No Brasil, um estudo com oito fundos desse segmento revelou que suas expectativas de retorno por ano são de, no mínimo, 10%, podendo chegar a 35% em alguns casos.

Uma demonstração desse otimismo em relação ao potencial do mercado brasileiro é a criação do First, de Regueira, que tem a meta de fazer aportes de 5 milhões a 30 milhões de dólares em negócios de impacto com faturamento anual próximo a 100 milhões de dólares nas áreas de saúde, educação, moradia e serviços financeiros.

Ele não dá detalhes sobre as buscas que tem feito nos últimos anos, mas o prospecto distribuído entre investidores em potencial informa que um dos alvos é uma rede de serviços odontológicos com faturamento de 90 milhões de dólares por ano e 300 unidades espalhadas pelo país. “Os modelos de negócios já se provaram. Nosso objetivo é conseguir fazer com que eles cresçam rapidamente”, afirma Regueira.

Uma minoria de investidores de impacto faz coro com o Prêmio Nobel Muhammad Yunus e prefere reinvestir o lucro no negócio, em vez de embolsá-lo. No Brasil, é o caso dos irmãos baianos Bernardo e Miguel Gradin, donos de 20% do grupo Odebrecht.

A única aposta do fundo Virtuose, criado por eles em 2012, é a Geekie, empresa de tecnologia que desenvolve produtos para a melhoria da educação pública. Bernardo se empolga com o tamanho que a empresa poderá ter, mas não espera com isso aumentar sua fortuna.

“Não estou interessado nos dividendos”, diz. Todos os investidores, porém, concordam num ponto: certa dose de capitalismo pode ser o antídoto de que o próprio capitalismo precisa para tornar o mundo melhor.

Fonte: Revista EXAME